Frase do capítulo:
"Vender o carro não foi difícil"
A Saga de Tião, Capítulo 0.
Aquele
encontro foi mágico. - Somente no sentido lúdico da palavra - Tião, Natasha e o
Espadachim se entreolharam como grandes amigos que se reencontram na festa de
20 anos de formados da quinta turma do curso de contabilidade das Faculdades
Integradas Almeida Souto.
- Natasha! Você
não mudou nada – disse Tião enquanto urinava na fralda de taboa.
- O que aconteceu
com você? Pensei ter te perdido naquele acidente terrível – lamentou Natasha.
Antes
que pudessem render o papo e trocar carícias, o líder dos Tak Tak se aproximou
para apressar o ilustre convidado espadaúdo.
Amado
convidado
Pessoa
tão aguardada
Você
deve ser breve
Nos
livrar dessa cilada
Os
Deuses não aceitam
Oferenda
expirada
Fluente em rima e com andar desequilibrando pra esquerda, o Espadachim aproximou-se mais do pajé
e falou-lhe ao pé do ouvido:
Agradeço
o convite
Ó,
nobre santidade
Minha
vida tava chata
Aguardando
novidade
Farei
o meu melhor
Pra
essa comunidade
O
santíssimo aborígene ordenou que levassem Ku para o altar na beira do
precipício. Rapidamente a multidão se aglomerou ao pé do morro aguardando o
pronunciamento rimado no sacerdote. O dia estava fresco, o céu de um azul
chato, com nuvens que não pareciam com nada e o vento assoviando desafinado.
A
mãe da pequena ultimamente era só pranto e lamento. Chorava sobre o leite
derramado as lágrimas que não tinha mais, mas conformada com o destino da
filha, acompanhou o cortejo até o altar. Não dá pra tetudo na vida, pensou se
consolando. Natasha, sem entender nada do que acontecia, ruminava um bezoar
enquanto seguia com o resto. Tião, que diferente da mãe não estava nada
conformado, pedia desesperadamente ao espadachim que a poupasse por conta
daquela mama inocente no seu pezinho recém nascido.
-
Psiu, amigo, chega aí. Vem cá, cara. Olha bem pra esse peitinho no meu pé. Você
não vai querer acabar comigo por conta dessa belezura, vai? Tanta teta murcha
aí precisando de uma aparada e você vai ter coragem de acabar logo com a minha?
Me libera aí.
Tião
clamava, mas o Espadachim não olhava pro lado. Parecia não se importar e estava
determinado a concluir a missão para a qual foi contratado. Terminada a
caminhada ao palco do sacrifício, a tribo calou-se para ouvir o pajé.
Amigos
Tak Tak
Apresento-lhes
a salvação
Nosso
herói veio de longe
Saudemos
nosso irmão
Rápido
como um ninja
Preciso
como cirurgião
Ninguém
da tribo sabia o que era um ninja e muito menos um cirurgião, mas aplaudiram e
ovacionaram o líder.
Colocando
a Ku sobre a mesa e o cu sobre o trono o pajé fez sinal para que o Espadachim
se aproximasse. Cheio de dedos, e polegares opositores que permitiam que ele
segurasse a espada, o habilidoso enviado fez as honras. Segurou a pequena pelos
pés a ergueu para que todos da tribo pudessem ver. Fez-se, novamente, o
silêncio.
Povo
estranho, encardido
Comecem
a celebrar
O
sangue será derramado
O
Sol voltará a brilhar
O
preço é só esta criança
Que
precisamos matar
Iniciarei
os procedimentos
Nesta
tarde profética
É
um momento delicado
Feremos
de forma bem ética
Por
favor, um pó compacto
Tudo
em nome da estética
Abaixem
as cabeças
Vocês
não perdem por esperar
Serei
preciso e certeiro
Cabeças
irão rolar
E
não to falando de Ku
Que
aqui não mais estará
A
tribo, encardida e muito obediente, permaneceu cabisbaixa esperando a nova
ordem do Espadachim. Algumas pessoas cochichavam, de olhos fechados, que podiam
sentir a brisa da Nova Era. Outro dizia que adorava aquele cheiro de sangue.
Demorou um tempo até que o primeiro rebelde, inquieto com um desfecho que não
vinha, levantasse a cabeça para espiar a cena toda. Ergueu um olho entreaberto
em direção ao altar e gritou apavorado:
Fomos
todos enganados
Ku
já se vai galopante
Acabou
a esperança
Tudo
no tempo de um instante
Num
segundo o paraíso
No
outro um fim humilhante
Ku,
carregada pelo Espadachim no lombo de Natasha, sumia no horizonte. A camela
galopava emocionada por resgatar seu grande amor. O Espadachim, pensando um
pouco mais lentamente que outrora, calculava a distância que ainda faltava para
o ponto de ônibus mais próximo. Saber que a tribo não dispunha de meios de
transporte para alcançá-los dava uma certa tranquilidade, mas o vacilo é
inimigo da perfeição. Chegaram ao ponto de ônibus (espacial) – eles estão numa
ilha, ou vocês acharam que iam fugir de circular? -.
Já
dentro do Discovery II, sentados e tranquilos, o Espadachim finalmente pôde
sentir-se confuso. Lembranças aleatórias vinham em sua memória e alguma coisa
não se encaixava logicamente. Perguntou:
- Ku, nessas
horas de confusão e problemas, o que você gosta de comer?
Natasha
abanou o rabo e tremeu o cupim sem entender o motivo da pergunta.
- Sabia! –
exaltou-se o Espadachim, tirando a máscara e revelando sua identidade.
- Siamês?!
Tião
rolou sobre seu próprio eixo na cadeira grande do ônibus e sentou-se sobre a
fralda cheia. Passados tantos anos da primeira temporada e tantas
reencarnações, não se lembrava com detalhes da fisionomia dos siameses, mas
aquela pergunta deu o click.
- Cadê seu irmão
da direita?
- Nos separamos.
Pouco depois que você passou pela nossa cantina, uma japonesa, muito da
científica, foi jantar lá também. Ela fez umas perguntas sobre você, tomou um
chá e foi embora. Voltou dias depois se oferecendo pra nos separar. No início
recusei, mas a bipolaridade falou mais alto e nos separamos no mesmo mês. Hoje
em dia ele trabalha como câmera de segurança de um supermercado em Brovary.
Parênteses
espacial: apesar de pouco difundido pela mídia, por motivos óbvios e golpistas
da direita burguesa coxinha, os dromedários não suportam muito tempo em
gravidade zero. Enquanto Tião e o Siamês conversavam, Natasha sofreu uma
convulsão e morreu na cadeira ao lado. Deixo aqui condolências à família.
O
ônibus ainda estava em gravidade zero e os dois continuaram o papo.
- Que coisa,
rapaz. Como você foi parar naquela ilha? – perguntou Tião.
Equanto
isso, numa padaria imunda do Bairro Carolina, que faz a melhor massa folhada da
região metropolitana de Belo Horizonte…
-
Vender o carro não foi difícil, o problema está sendo comprar outro com o
dinheiro mixuruca dessa sucata.
-
Mas eu pensei que você já tinha juntado a grana pro consórcio.
-
Tinha, mas fumei ela toda.
Os
dois riram muito e morreram atropelados atravessando fora da faixa.
Capitão
Mumsfield informou pelo auto falante: Próxima parada, Cairo. – ele obviamente
falou em inglês, mas traduzi para você, leitor incapaz. – O Siamês desceu
cambaleante após o pouso ríspido. Carregando Tião no colo, tratou de cobrir a
cabeça da criança com o pano de saco que a enrolava desde que saíram da tribo.
Não queria que a criança lavantasse suspeita e os ventos fortes que sopravam
nos arredores de Cairo levantavam uma nuvem de areia. Na alfândega aero
espacial, um califa que era parente direto de Tutankamon, mas que havia sido
deserdado porque tava de olho no decote dela, perguntou:
- Não, senhor.
- Pode passar.
Tião
e o Siamês dobraram a direita e cascaram no capinado. Os dois não tinham um
plano nem pra daqui 40 minutos que dirá para o resto de suas vidas. Tião já
havia perdido todos os amores, amigos e dignidades pelo caminho. O Siamês já
tinha se desfeito da cantina, de sua companhia quase inseparável e de um disco
arranhado do Roberto Carlos. Tudo o que tinham era um ao outro e um Trident de
hortelã. Procuraram um hotel num mapa afixado na parede da saída do metro.
- Bem vindos ao
Catacumba Palace Hotel, o senhor tem reserva?
- Não, eu estou de
passagem pela cidade e preciso de um quarto só por hoje.
- Vou ver o que
posso fazer, senhor. Estamos recebendo a comitiva de Lady Meneg’hell e todos os
quartos estão ocupa… espere, parece que tivemos uma desistência. O senhor e seu
pacote de pano – a moça fez cara de nojo enquanto falava –
ficarão no quarto 665, com vista para o Nilo!
No caminho para o quarto, Tião cantarolava baixinho: queeeem queeer pão, quemquerpão,
quemquerpão, que tá quentinho, ta quem…
- Não sei, essa
música veio na minha cabeça. Sabe quando você passa uma vergonha grande na terceira série e do nada lembra dela?
- Sei bem.
Primeiro dia visitando os sogros e a descarga não funciona. Lembro disso todos
os dias.
O
quarto 665 ficava no térreo, logo acima do quarto 666. Os dois passaram pelo
saguão lateral onde havia uma replica em tamanho reduzido da pirâmide de Quéops, uma esfinge de pedra sabão e uma
máquina de vender desodorantes. No caminho cruzaram com uma paquita satânica,
um cachorro loiro e uma sapatão chamada Marlene. O quarto não era bem o que
esperavam. As cortinas brancas feitas de gaze escondiam janelas igualmente
grandes e que não davam para lugar nenhum. Distante dois metros do vidro, um
muro de tijolos do fundo da cozinha e um banquinho enferrujado. Seu Nilo acenou
para o Siamês assim que viu a silhueta desenhada pela luz do quarto. O trabalho
de segurança era solitário e ele não perdia a oportunidade de ser simpático. Com
a fralda trocada, Tião e o Siamês esperariam amanhecer para pensar no que
fazer.
- 2:59
am -
Tião
acordando violentamente com o bigode suado.
- Que foi? Quer
mamadeira?
- Não, lembrei de
uma coisa que vai salvar nossa pele e me fazer voltar ao que eu era antes.
Lembra da comitiva que ta aqui no hotel? Então, é de uma senhora muito poderosa
e que trabalha pro tinhoso. Temos que descobrir em que quarto ela está e dar um
jeito de falar com ela.
- Isso é fácil. -
disse o Espadachim (agora é conveniente chamá-lo assim, vocês vão ver).
Alguns
minutos depois de deixar o quarto, o Espadachim retorna com uns pingos de
sangue da roupa.
- Me põe no colo e
corre. Vamos aproveitar que ela deve estar dormindo e os seguranças também.
- Não, Tião, tem
uma sapatão na porta do quarto. Vamos subir pelo ducto de ar condicionado e
entramos sem ninguém nos ver.
Os
dois se esgueiraram pela tubulação empoeirada – nos filmes elas estão sempre
limpas, mas na vida real não – e conseguiram sair pela grade ao lado do
banheiro. Praga, que dormia no sofa, nem deu fé. Andaram sobre o carpete sem
fazer barulho e mordiam a lingua para evitar o bater dos queixos. Fazia seis
graus no quarto da loiraça beuzebu. Tião, com certa urgência para
resolver tudo, pulou logo sobre a cama e, pegando um travesseiro, sufocou Lady
Meneg’hell.
- Não quero te
machucar e só preciso de uma favorzinho. Coisa que você resolve com um estalar
de dedos.
- Uhhuhuhhuuhhu. –
respondeu a loira.
Tião tomou
aquilo como um sim e retirou devagar o contour pillow de seu rosto pessegoso.
- Quem xão vocêix?
- A senhora não
vai lembrar de mim. Quando nos encontramos a primeira vez eu estava num formato
diferente. Mais alto e masculino, digamos.
O Siamês só olhava.
- Maix o que querem
de mim? Vocêix xão meux fãinx?
- Eu era um
europeu lindo há uns tempos atrás. Morri por uma besteira e reencarnei nesse
corpo melanodérmico e infantil. Preciso que me volte ao normal.
- Maix ixo é
muito complicado, baixinha. Temox regraix muito expeciaix para ixo.
Tião
estava sem paciência e pulou novamente em cima da loira com o travesseiro.
Parecia o boneco assassino bronzeado.
O
Siamês apertou o botão do elevador com uma espada que não vem ao caso e os três
entraram sorrateiramente. Ficaram de frente para a porta, com exceção de Xuxa,
que se olhava no espelho enquanto cobria as rugas com argamassa nude. A viagem
vertical não demorou muito e em poucos segundos as portas se abriam na
escuridão. Luzes no piso indicavam o caminho e eles sairam em meio ao vento
frio da noite Cairo.
- Não tenho muitas
ambições, Tião. Acho que queria só reencontrar meu irmão.
- O da esquerda?
- Não, Rodolfo. O ultimogênito. Olha! Vulvas!
- Não xão vulvaix.
Xão beijinhoux.
Chegando
perto da nave a escada principal desceu imediatamente. Lady Meneg’hell entrou
primeiro. Tião logo procurou um lugar pra sentar enquando a loira girava uns
discos ao contrario para acionar os comandos no painel da nave. A voz robótica
do computador de bordo – que era igual a da Ivete Sangalo, mas o motivo eu não
revelo - bocejou antes de dar as boas vindas.
- Antix foxe. Precisamux
voltar praix profundezax agora meixmo.
- Perfeitamente. Sai
do chãaaaaooo. – disse o computador enquanto a nave era acelerada.
A
viagem às entranhas do obscuro demora exatos sete minutos e foi o tempo do Siamês
se encantar com a loirice de Lady Meneg’hell e querer procriar com ela.
Tião, flatulento e sialorréico, aguardava ansioso pela infernissagem para sair
logo da nave e iniciar uma vida nova depois de tantas vidas passadas. Um sinal
luminoso de apertar os cintos indicou o pouso próximo. Barulhos e adrenalina.
Todos desceram e acompanharam a loira pelo calçamento que levava ao castelo,
onde um jantar estava posto esperando a turma toda. Codornas, pernil de
criancinha beliscada (dado investigativo necessário: quando a Xuxa passava batom e
beijava o rosto de uma criança no programa, era uma espécie da marcação de gado
pro abate. Pode procurar, não tem nenhuma viva) e pavê de sonho de valsa. Com todos acomodados e com guardanapo de linho egípcio no colo, a rainha dos baixinhos bateu o garfo de marfim na taça dando o sinal. Entraram dois seguranças sarados e sem camisa.
Foi uma gritaria só. Tião pulava e gritava de felicidade pela iminente volta ao seu corpo. O Espadachim gritava de entusiasmo por ser prisioneiro do amor de uma mulher tão atraente e capetuda, uma criança deitada numa bandeja de prata também gritava - era o steak tartare - .
Pequim, setembro de 2009
- Tudo bem? Me chamo Lucas, posso me sentar?
- Claro, fique a vontade
A mesa é bem grande
Te faço essa caridade
Nunca te vi por aqui
Por acaso é novo na cidade?
- Obrigado, achei engraçado você conversar rimando. Qual seu nome?
- Por favor, não me oprima
Já nasci fazendo verso
Rima rica é coisa fina
Deixe me apresentar
Prazer, meu nome é Tina.
Fim!?