domingo, 26 de junho de 2016

XVI - Êspensaquéofim



Frase do capítulo:
"Vender o carro não foi difícil"
A Saga de Tião, Capítulo 0.


Aquele encontro foi mágico. - Somente no sentido lúdico da palavra - Tião, Natasha e o Espadachim se entreolharam como grandes amigos que se reencontram na festa de 20 anos de formados da quinta turma do curso de contabilidade das Faculdades Integradas Almeida Souto.
- Natasha! Você não mudou nada – disse Tião enquanto urinava na fralda de taboa.
    - O que aconteceu com você? Pensei ter te perdido naquele acidente terrível – lamentou Natasha.

Antes que pudessem render o papo e trocar carícias, o líder dos Tak Tak se aproximou para apressar o ilustre convidado espadaúdo.

Amado convidado
Pessoa tão aguardada
Você deve ser breve
Nos livrar dessa cilada
Os Deuses não aceitam
Oferenda expirada

Fluente em rima e com andar desequilibrando pra esquerda, o Espadachim aproximou-se mais do pajé e falou-lhe ao pé do ouvido:

Agradeço o convite
Ó, nobre santidade
Minha vida tava chata
Aguardando novidade
Farei o meu melhor
Pra essa comunidade

O santíssimo aborígene ordenou que levassem Ku para o altar na beira do precipício. Rapidamente a multidão se aglomerou ao pé do morro aguardando o pronunciamento rimado no sacerdote. O dia estava fresco, o céu de um azul chato, com nuvens que não pareciam com nada e o vento assoviando desafinado.

A mãe da pequena ultimamente era só pranto e lamento. Chorava sobre o leite derramado as lágrimas que não tinha mais, mas conformada com o destino da filha, acompanhou o cortejo até o altar. Não dá pra tetudo na vida, pensou se consolando. Natasha, sem entender nada do que acontecia, ruminava um bezoar enquanto seguia com o resto. Tião, que diferente da mãe não estava nada conformado, pedia desesperadamente ao espadachim que a poupasse por conta daquela mama inocente no seu pezinho recém nascido.

- Psiu, amigo, chega aí. Vem cá, cara. Olha bem pra esse peitinho no meu pé. Você não vai querer acabar comigo por conta dessa belezura, vai? Tanta teta murcha aí precisando de uma aparada e você vai ter coragem de acabar logo com a minha? Me libera aí.

Tião clamava, mas o Espadachim não olhava pro lado. Parecia não se importar e estava determinado a concluir a missão para a qual foi contratado. Terminada a caminhada ao palco do sacrifício, a tribo calou-se para ouvir o pajé.

Amigos Tak Tak
Apresento-lhes a salvação
Nosso herói veio de longe
Saudemos nosso irmão
Rápido como um ninja
Preciso como cirurgião

Ninguém da tribo sabia o que era um ninja e muito menos um cirurgião, mas aplaudiram e ovacionaram o líder.

Colocando a Ku sobre a mesa e o cu sobre o trono o pajé fez sinal para que o Espadachim se aproximasse. Cheio de dedos, e polegares opositores que permitiam que ele segurasse a espada, o habilidoso enviado fez as honras. Segurou a pequena pelos pés a ergueu para que todos da tribo pudessem ver. Fez-se, novamente, o silêncio.

Povo estranho, encardido
Comecem a celebrar
O sangue será derramado
O Sol voltará a brilhar
O preço é só esta criança
Que precisamos matar

Iniciarei os procedimentos
Nesta tarde profética
É um momento delicado
Feremos de forma bem ética
Por favor, um pó compacto
Tudo em nome da estética

Abaixem as cabeças
Vocês não perdem por esperar
Serei preciso e certeiro
Cabeças irão rolar
E não to falando de Ku
Que aqui não mais estará

A tribo, encardida e muito obediente, permaneceu cabisbaixa esperando a nova ordem do Espadachim. Algumas pessoas cochichavam, de olhos fechados, que podiam sentir a brisa da Nova Era. Outro dizia que adorava aquele cheiro de sangue. Demorou um tempo até que o primeiro rebelde, inquieto com um desfecho que não vinha, levantasse a cabeça para espiar a cena toda. Ergueu um olho entreaberto em direção ao altar e gritou apavorado:

Fomos todos enganados
Ku já se vai galopante
Acabou a esperança
Tudo no tempo de um instante
Num segundo o paraíso
No outro um fim humilhante

Ku, carregada pelo Espadachim no lombo de Natasha, sumia no horizonte. A camela galopava emocionada por resgatar seu grande amor. O Espadachim, pensando um pouco mais lentamente que outrora, calculava a distância que ainda faltava para o ponto de ônibus mais próximo. Saber que a tribo não dispunha de meios de transporte para alcançá-los dava uma certa tranquilidade, mas o vacilo é inimigo da perfeição. Chegaram ao ponto de ônibus (espacial) – eles estão numa ilha, ou vocês acharam que iam fugir de circular? -.
Já dentro do Discovery II, sentados e tranquilos, o Espadachim finalmente pôde sentir-se confuso. Lembranças aleatórias vinham em sua memória e alguma coisa não se encaixava logicamente. Perguntou:

- Ku, nessas horas de confusão e problemas, o que você gosta de comer?

Natasha abanou o rabo e tremeu o cupim sem entender o motivo da pergunta.

- Chouriço e mucilon. – Repondeu Tião, sem titubear 
- Sabia! – exaltou-se o Espadachim, tirando a máscara e revelando sua identidade.
       - Siamês?!

Tião rolou sobre seu próprio eixo na cadeira grande do ônibus e sentou-se sobre a fralda cheia. Passados tantos anos da primeira temporada e tantas reencarnações, não se lembrava com detalhes da fisionomia dos siameses, mas aquela pergunta deu o click.

- Cadê seu irmão da direita?
- Nos separamos. Pouco depois que você passou pela nossa cantina, uma japonesa, muito da científica, foi jantar lá também. Ela fez umas perguntas sobre você, tomou um chá e foi embora. Voltou dias depois se oferecendo pra nos separar. No início recusei, mas a bipolaridade falou mais alto e nos separamos no mesmo mês. Hoje em dia ele trabalha como câmera de segurança de um supermercado em Brovary.
- Deve ter sido difícil decidir quem ficaria com o corpo.
- Nada. Como era eu que controlava os esfincteres, dei o ultimato.

Parênteses espacial: apesar de pouco difundido pela mídia, por motivos óbvios e golpistas da direita burguesa coxinha, os dromedários não suportam muito tempo em gravidade zero. Enquanto Tião e o Siamês conversavam, Natasha sofreu uma convulsão e morreu na cadeira ao lado. Deixo aqui condolências à família.

O ônibus ainda estava em gravidade zero e os dois continuaram o papo.

Que coisa, rapaz. Como você foi parar naquela ilha? – perguntou Tião.
- Ah, depois de me separar do meu irmão resolvi seguir a tradição da família e praticar esgrima. Me mudei para a França, onde não precisava tomar banho todos os dias e onde podia comer manteiga sem medo de infarto. Massa folhada é vida, Tião.

Equanto isso, numa padaria imunda do Bairro Carolina, que faz a melhor massa folhada da região metropolitana de Belo Horizonte…

- Vender o carro não foi difícil, o problema está sendo comprar outro com o dinheiro mixuruca dessa sucata.
- Mas eu pensei que você já tinha juntado a grana pro consórcio.
- Tinha, mas fumei ela toda.

Os dois riram muito e morreram atropelados atravessando fora da faixa.

Capitão Mumsfield informou pelo auto falante: Próxima parada, Cairo. – ele obviamente falou em inglês, mas traduzi para você, leitor incapaz. – O Siamês desceu cambaleante após o pouso ríspido. Carregando Tião no colo, tratou de cobrir a cabeça da criança com o pano de saco que a enrolava desde que saíram da tribo. Não queria que a criança lavantasse suspeita e os ventos fortes que sopravam nos arredores de Cairo levantavam uma nuvem de areia. Na alfândega aero espacial, um califa que era parente direto de Tutankamon, mas que havia sido deserdado porque tava de olho no decote dela, perguntou:

Algum de vocês está desembarcando com sementes, comida não processada, meias sujas, materia escura ou lixo espacial?
Não, senhor.
Pode passar.

Tião e o Siamês dobraram a direita e cascaram no capinado. Os dois não tinham um plano nem pra daqui 40 minutos que dirá para o resto de suas vidas. Tião já havia perdido todos os amores, amigos e dignidades pelo caminho. O Siamês já tinha se desfeito da cantina, de sua companhia quase inseparável e de um disco arranhado do Roberto Carlos. Tudo o que tinham era um ao outro e um Trident de hortelã. Procuraram um hotel num mapa afixado na parede da saída do metro.






Bem vindos ao Catacumba Palace Hotel, o senhor tem reserva?
Não, eu estou de passagem pela cidade e preciso de um quarto só por hoje.
Vou ver o que posso fazer, senhor. Estamos recebendo a comitiva de Lady Meneg’hell e todos os quartos estão ocupa… espere, parece que tivemos uma desistência. O senhor e seu pacote de pano – a moça fez cara de nojo enquanto falava – ficarão no quarto 665, com vista para o Nilo!

No caminho para o quarto, Tião cantarolava baixinho: queeeem queeer pão, quemquerpão, quemquerpão, que tá quentinho, ta quem…

Que isso, Tião?
Não sei, essa música veio na minha cabeça. Sabe quando você passa uma vergonha grande na terceira série e do nada lembra dela?
Sei bem. Primeiro dia visitando os sogros e a descarga não funciona. Lembro disso todos os dias.

O quarto 665 ficava no térreo, logo acima do quarto 666. Os dois passaram pelo saguão lateral onde havia uma replica em tamanho reduzido da pirâmide de  Quéops, uma esfinge de pedra sabão e uma máquina de vender desodorantes. No caminho cruzaram com uma paquita satânica, um cachorro loiro e uma sapatão chamada Marlene. O quarto não era bem o que esperavam. As cortinas brancas feitas de gaze escondiam janelas igualmente grandes e que não davam para lugar nenhum. Distante dois metros do vidro, um muro de tijolos do fundo da cozinha e um banquinho enferrujado. Seu Nilo acenou para o Siamês assim que viu a silhueta desenhada pela luz do quarto. O trabalho de segurança era solitário e ele não perdia a oportunidade de ser simpático. Com a fralda trocada, Tião e o Siamês esperariam amanhecer para pensar no que fazer.

- 2:59 am -

Tião acordando violentamente com o bigode suado.

Siamês! Acorda! Acorda!
Que foi? Quer mamadeira?
Não, lembrei de uma coisa que vai salvar nossa pele e me fazer voltar ao que eu era antes. Lembra da comitiva que ta aqui no hotel? Então, é de uma senhora muito poderosa e que trabalha pro tinhoso. Temos que descobrir em que quarto ela está e dar um jeito de falar com ela.
Isso é fácil. - disse o Espadachim (agora é conveniente chamá-lo assim, vocês vão ver).

Alguns minutos depois de deixar o quarto, o Espadachim retorna com uns pingos de sangue da roupa.
666. É esse logo acima da gente.
Me põe no colo e corre. Vamos aproveitar que ela deve estar dormindo e os seguranças também.
Não, Tião, tem uma sapatão na porta do quarto. Vamos subir pelo ducto de ar condicionado e entramos sem ninguém nos ver.

Os dois se esgueiraram pela tubulação empoeirada – nos filmes elas estão sempre limpas, mas na vida real não – e conseguiram sair pela grade ao lado do banheiro. Praga, que dormia no sofa, nem deu fé. Andaram sobre o carpete sem fazer barulho e mordiam a lingua para evitar o bater dos queixos. Fazia seis graus no quarto da loiraça beuzebu. Tião, com certa urgência para resolver tudo, pulou logo sobre a cama e, pegando um travesseiro, sufocou Lady Meneg’hell.

Fica bem calada quando eu tirar esse travesseiro. – disse Tião enquanto ela se debatia.
Não quero te machucar e só preciso de uma favorzinho. Coisa que você resolve com um estalar de dedos.
Uhhuhuhhuuhhu. – respondeu a loira.

Tião tomou aquilo como um sim e retirou devagar o contour pillow de seu rosto pessegoso.

     - Quem xão vocêix?
     - A senhora não vai lembrar de mim. Quando nos encontramos a primeira vez eu estava num formato diferente. Mais alto e masculino, digamos.
     
     O Siamês só olhava.
     
     - Maix o que querem de mim? Vocêix xão meux fãinx?
    - Eu era um europeu lindo há uns tempos atrás. Morri por uma besteira e reencarnei nesse corpo melanodérmico e infantil. Preciso que me volte ao normal.

     - Maix ixo é muito complicado, baixinha. Temox regraix muito expeciaix para ixo.

Tião estava sem paciência e pulou novamente em cima da loira com o travesseiro. Parecia o boneco assassino bronzeado.

Calma, calma. Poxo resolver ixo pra vocêix. Minha nave ixta pouxada no telhado do hotel. Vamux até lá pelo elevador privativo, maix xem violênxia.

O Siamês apertou o botão do elevador com uma espada que não vem ao caso e os três entraram sorrateiramente. Ficaram de frente para a porta, com exceção de Xuxa, que se olhava no espelho enquanto cobria as rugas com argamassa nude. A viagem vertical não demorou muito e em poucos segundos as portas se abriam na escuridão. Luzes no piso indicavam o caminho e eles sairam em meio ao vento frio da noite Cairo.

Espada, pensa aí no que vai pedir pra ela. Só de reencarnar como eu era já to feliz; se puder ser em Kiev, melhor ainda.
Não tenho muitas ambições, Tião. Acho que queria só reencontrar meu irmão.
- O da esquerda?
- Não, Rodolfo. O ultimogênito. Olha! Vulvas!
Não xão vulvaix. Xão beijinhoux.

Chegando perto da nave a escada principal desceu imediatamente. Lady Meneg’hell entrou primeiro. Tião logo procurou um lugar pra sentar enquando a loira girava uns discos ao contrario para acionar os comandos no painel da nave. A voz robótica do computador de bordo – que era igual a da Ivete Sangalo, mas o motivo eu não revelo - bocejou antes de dar as boas vindas.

Olá, minha rainha. A que maínha deve a honra de uma visita tão cedo? Oxe, já acabaram os compromissos por aqui, foi?
Antix foxe. Precisamux voltar praix profundezax agora meixmo.
Perfeitamente. Sai do chãaaaaooo. – disse o computador enquanto a nave era acelerada.

A viagem às entranhas do obscuro demora exatos sete minutos e foi o tempo do Siamês se encantar com a loirice de Lady Meneg’hell e querer procriar com ela. Tião, flatulento e sialorréico, aguardava ansioso pela infernissagem para sair logo da nave e iniciar uma vida nova depois de tantas vidas passadas. Um sinal luminoso de apertar os cintos indicou o pouso próximo. Barulhos e adrenalina. Todos desceram e acompanharam a loira pelo calçamento que levava ao castelo, onde um jantar estava posto esperando a turma toda. Codornas, pernil de criancinha beliscada (dado investigativo necessário: quando a Xuxa passava batom e beijava o rosto de uma criança no programa, era uma espécie da marcação de gado pro abate. Pode procurar, não tem nenhuma viva) e pavê de sonho de valsa. Com todos acomodados e com guardanapo de linho egípcio no colo, a rainha dos baixinhos bateu o garfo de marfim na taça dando o sinal. Entraram dois seguranças sarados e sem camisa.

- Papaquitox, podem levar a crianxinha para o calabouxo da reencarnaxão. O velho vocêix prendam no meu quarto que agora ele é meu.

Foi uma gritaria só. Tião pulava e gritava de felicidade pela iminente volta ao seu corpo. O Espadachim gritava de entusiasmo por ser prisioneiro do amor de uma mulher tão atraente e capetuda, uma criança deitada numa bandeja de prata também gritava - era o steak tartare - .

Pequim, setembro de 2009

- Tudo bem? Me chamo Lucas, posso me sentar?
- Claro, fique a vontade
  A mesa é bem grande
  Te faço essa caridade
  Nunca te vi por aqui
  Por acaso é novo na cidade?
- Obrigado, achei engraçado você conversar rimando. Qual seu nome?
- Por favor, não me oprima
  Já nasci fazendo verso
  Rima rica é coisa fina
  Deixe me apresentar
  Prazer, meu nome é Tina.
  
  
Fim!?


quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

XIV - Chuleite


Frase do capítulo:
"Chato é ter chato."
Isabella Brandão


A tribo dos Tak Tak ficou extasiada com o nascimento da pequena Kuara Ayala. Ela nascia no dia da lua cheia bonina, um evento que acontecia a cada 35 cantos da cigarra e que anunciava a nova era de fartura para a tribo. Ku, como a mãe preferia que a chamassem, foi levada pelo cara grande até um altar na beira do barranco, onde uma multidão esperava ansiosa. Colocada sobre uma cama de capim dourado, o chefão, que como todos da tribo só conversava em versos, disse:

A menina da cara amassada
Hoje veio trazer a bonança
Parida de uma vulva peluda
Essa gordinha criança
Nos alegra com a lua bonina
E enche o povo de esperança

A supimposa profecia
Finalmente se completa
As cigarras que agora cantam
Minha música predileta
Anunciam a nova era
Que tanto falava o profeta

Mas nem tudo são flores
Há sempre o sacrifício
Vão-se as mãos e os dedos
Em troca de outro solstício
Me entristece cortar os cotocos
Mas são os ossos do ofício

Tião, que havia reencarnado nessa linda menininha, tinha plena consciência do que acontecia ao seu redor. Por algum motivo – que eu sei qual é, mas a J.K. Rowling não deixou revelar – ele não perdeu a memória da vida passada e, desde a fecundação, vem tendo a percepção da vida nova. Passou maus bocados dentro útero, sofrendo as dores das mitoses constantes, escapando de um enforcamento por uma circular de cordão e sendo aterrorizado com o pênis descomunal do pai fazendo visitas diárias até a trigésima nona semana de gestação. No ócio solitário da bolsa amniótica, bolava planos de fuga que nunca deram certo. Tentou escapar pelo ânus uma vez, mas só conseguiu constranger a mãe num almoço da tribo. 

Sem saber desse detalhe no regimento da profecia, a mãe que não tinha lido as letrinhas miúdas no pé do livro sagrado, interveio para tentar salvar os membros da pequena Ku.

Amado líder iluminado
Pare agora essa titica
A menina não tem culpa
Daqui uns anos como fica?
Quando chegar na puberdade
Vai lhe faltar a siririca

Reconsidere a profecia
Reveja a interpretação
Existe sempre uma brecha
Em toda legislação
Vai ser a única maneta
No meio de um povo são

O líder supremo, sem sentir qualquer compaixão e nem tremer a voz, colocou a mãe de Ku no seu devido lugar de mortal sem conexões com as divindades superiores.

A senhora agora se cale
Sua filha tem uma sina
O sacrifício é de todos
Não só da pobre menina
Vamos ter limpá-la
Depois que ela usar a latrina

Nós todos dessa tribo
Valorizamos a tradição
Pagamos as nossas dívidas
Não importa a ocasião
Vamos cortar os cotocos
A senhora querendo ou não

Tião, aprisionado no corpo da pequena Ku, estava apavorado nessa altura da poesia. Uma reencarnação era muito pouco pra esquecer o trauma de ter uma mão amputada por um gordo na última vida. Agora, renascido todo inteiro, mal abria os olhos e já teria que passar por isso novamente. Ele chorava desesperado e se debatia em vão. Cada choro virava uma mamadeira de leite de leoa goela abaixo; cada esperniada era uma massagem para aliviar os gases e a noite ia caindo sem esperança. Na manhã seguinte, Tião foi acordado logo cedo com o barulho de chocalhos de cascavel. Apavorado, abriu só um olho para espiar a cara da morte sem ter que encará-la de frente assim tão cedo. Para seu alívio, ou pânico maior, viu o líder dos Tak Tak segurando um pedaço de pau com vários chocalhos de cobra amarrados e caminhando em sua direção. Ku/Tião, pensou por um segundo em se fazer de morta e, quem sabe, ser enterrada viva, mas inteira. A morte era melhor que aquele destino maneta. Sem conseguir uma parada cardíaca auto induzida com a força do pensamento, foi sacolejada pelo guru supremo.

Acorde enviada do céu
Acorde para o seu destino
O sol bonina já nasceu
Nasceu também o Deus menino
Se Cristã nossa tribo fosse
Seria esse um verso natalino

A mãe de Ku se aproximou distraída, testando a temperatura do leite no dorso da mão direita. Quando ergueu os olhos e viu a pequena sendo levada pela porta da frente, deixou cair a mamadeira e seguiu o pajé desesperada.

Pare agora, amado mestre
Longe de mim persuadí-lo
Ela não é a escolhida
Te imploro, não faça aquilo
O livro sagrado não diz nada
Sobre um terceiro mamilo

O suprassumo da representação divina na Terra, que antes andava apressado, diminuiu o passo até parar. Virou-se para trás com cara de espanto e perguntou:

Que porreéssa, minha senhora?
Explique esse disparate
Ontem ela era normal
Agora ta sobrando parte?
Me mostre logo esse mamilo
Antes que eu mesmo te mate

Tião, que antes entendia tudo, nessa hora não entendeu nada. Olhou pra mãe com a mesma cara de intrigado que o pajé olhou. Mas impossibilitado de se defender ou mesmo controlar seus esfíncteres, só restava relaxar e ver no que aquilo tudo ia dar.

Eu não disse nada antes
Só hoje senti o chulé
Minha filha veio marcada
Com um mamilo no pé
Ela é filha do demônio
Me perdoe, nobre Pajé

Chorando e soluçando, a mãe continuou

Eu quis acabar com tudo
Enterrá-la no meio do mato
Mas pensei que tem coisa pior
E não cheguei às vias de fato
Isso agora não tem importância
Muito mais chato é ter chato

O pajé não comprou muito a desculpa da mãe de Ku de que uma coceirinha genital é pior que ter um filho enviado do capeta. Olhando fixamente para o mamilo extranumerário no pé da criança, viu a promessa de prosperidade para a tribo ir pro beleléu. Refletiu sobre os ensinamentos milenares que havia estudado e, rapidamente, concluiu o que seria certo fazer. Apertou o passo novamente e #partiu em direção ao altar de sacrifício. A mãe de Ku o seguiu apreensiva. Ao chegar no alto do morro, o chefão dos índios colocou Tião sobre a mesa e gritou para o povo que esperava ansiosamente pela oferenda.

Meu povo, trago as novas
Nosso anjo é do capeta
Não podemos ofertá-la
No céu há uma nuvem preta
Os Deuses logo veriam
No pé ela tem uma teta

A multidão ficou em polvorosa enquanto o pajé erguia a criança e mostrava o mamilo no pé. As pessoas se olhavam canastronamente como figurantes mal dirigidos. Ninguém sabia o que seria feito com aquela aberração. Foi quando o pajé prosseguiu.

Já sei como resolver
Podem confiar em mim
Conheço um homem de longe
Tudo da certo no fim
Vou enviar um recado
Mandar buscar um espadachim



Frase do próximo capítulo: "Aí virou o samba do crioulo loiro"

O capítulo também deverá conter uma barata mentirosa e sete saias de filó.

(Lembrando que todos os capítulos desta última temporada deverão conter a palavra "último". "Última", "últimos","últimas" também valem.  "Ultimamente", "ultimato" e "ultimogênito" estão proibidas.)

terça-feira, 6 de agosto de 2013

XIII – Você Decide


Frase do capítulo:
Quando é que urucum dá?”

1
“Era só o que me faltava”, pensou Tião, tentando proteger o cocuruto com a mão que lhe restava. A vaca vestida de cisne negro fora só o começo: enquanto a pobre ruminante mugia de dor depois de se estatelar no chão de terra batida do Poço das Almas Suicidas, centenas de oitras cousas totalmente desconexas choviam do teto e deixavam todo mundo em pânico. Um zepelim de chumbo esmagou Marina Gulosa de Fátima; uma pança de mamute arrancou um naco da panturrilha de Jeová; um sósia do Galeão Cumbica passou raspando perto de Tião. “O que tá acontecendo?!”, gritava ele, estupefato. “É um Brainstorm! Salve-se quem puder!”, berrou Jeová, antes de ser atingido na fuça por um frasco de Emulsão Scott. Em meio ao caos, Tião tentava identificar se havia chovido algo que lhe pudesse ser útil. Seu olhar se deteve em um embrulho bem bonito, com papel bonina e laço cor de marmelo. Mas ele reparou que lá longe, também trazida pela súbita tempestade, havia uma moça simpática em cuja blusa se lia: “posso ajudar?”
Se você acha que Tião deve abrir o embrulho, vá para 2.
Se acha que ele deve pedir ajuda à moça simpática, vá para 3.

2
Tião pegou o embrulho com desconfiança. Chacoalhou a caixa perto do ouvido, como uma criança tentando adivinhar se ganhou de aniversário um carrinho irado ou um frustrante pacote de meias. Desfez o laço cor de marmelo cautelosamente, rasgou o papel bonina ainda cabreiro e abriu a caixa esperando uma bomba explodir na sua cara. Mas dentro havia apenas um telefone celular. Ele retirou o aparelho da caixa e resolveu ligar para o número pintado no barco com o qual chegara ali. Objetos aleatórios continuavam caindo por todos os lados e ele chegou a ser atingido por um saco de cimento, mas, tal qual na célebre anedota que costumava preocupar os incautos antes de tranquilizá-los com a inevitável punch line, o saco estava vazio. O telefone chamou algumas vezes até que Tião ouviu uma voz malandra do outro lado: “Alôu! Você ligou para Djavan Faz Frete, mas no momento estou soltando um barro, tomando pinga ou pegando umas barangas. Se quiser deixar recado, vai na fé. BIIIIP”.
Se acha que Tião deve deixar recado pedindo socorro, vá para 4.
Se acha que ele deve gravar um trote, vá para 6.

3
“Olá”, disse a moça, abrindo um sorrisão autêntico que encheu de esperança o coraçãozinho angustiado de Tião. “Como é que eu faço pra sair daqui?”, perguntou ele. A moça fechou o sorriso de boas-vindas e abriu outro, condescendente, como se a resposta fosse mais óbvia que embalagem de xampu instruindo a enxaguar após o uso. E apontou para uma parede ao lado de Tião: “É por ali”. Lá estava uma porta com uma plaquinha luminosa que piscava: SAÍDA DE EMERGÊNCIA. Ele correu depressa até a saída, escapando por pouco de levar na cabeça uma tauba de tiro ao álvaro e uma peixeira de baiano. Já estava com a mão na maçaneta quando ouviu uma voz roufenha e moribunda: “Tiããããão...” Era Jeová, ferido em meio aos destroços da tempestade.
Se acha que Tião deve abrir a porta e sair logo dali, vá para 5.
Se acha que ele deve voltar e ajudar Jeová, vá para 7.

4
“Alô, seu Djavan! Se puder mandar ajuda aqui pro Poço das Almas Suicidas, eu te pago um sanduíche de mortadela assim que reencarnar!”, gravou Tião na secretária eletrônica. Desligou e exalou um suspiro desesperançoso. Ao seu redor o bicho pegava: Marlúcia fora esmagada por uma bigorna feita de mussarela de búfala e Juraci havia sido atingido(a) no olho por uma batuta de maestro (Nota do autor: eu nunca sei se Juraci é nome de homem ou de mulher). Tião tinha que pensar rápido: pra quem mais ele podia ligar? O único número que sabia de cor era o da Telepizza Zangabeiras. O que vinha bem a calhar, já que toda essa confusão lhe dera uma fome danada e ele não tinha tempo de fazer churrasco com a vaca vestida de cisne negro. Mas aí outro número pipocou em sua mente: o da Besta. Será que estava tão desesperado assim para tentar negociar com a Capetona?
Para ligar para a Diaba, vá para 15.
Para discar o número da Telepizza Zangabeiras, vá para 11.

5
Tião abriu a porta e deu de cara com um ambiente familiar: estava novamente nas ruas do inferno, cercado por almas penadas que caminhavam, papeavam e pegavam fogo. Respirou aliviado por se ver livre das agruras do Poço das Almas Suicidas e de volta à estaca zero, em busca de um jeito de retornar à vida. Sentia saudades do mundo terreno. Lembrava da corcova de Natasha, da língua presa de seu pai, do cheirinho de plutônio das ruas de Pripyat. Pensava no enigmático pacote que sua prima Pavlova havia deixado na Ucrânia: sentia que ali havia uma peça importante de seu puzzle existencial, de seu sudoku metafísico. Precisava estar vivo novamente, e precisava que descobrir como. Ele vagou pelas quebradas do inferno, lendo as placas e observando o movimento. Uma longa fila lhe chamou a atenção: ela dava a volta no quarteirão, virava à direita e depois à esquerda, subia pela Rua dos Bobos bem pra lá do número zero e terminava num ziguezague zonzo, formando um desenho de quem tomou pau no psicotécnico quando vista nas imagens de satélite do Google Hell. “Que fila é essa?”, perguntou Tião a uma senhorinha cansada. E como que num milagre – ou num recurso narrativo assaz conveniente – ela respondeu: “É a fila pra reencarnar, meu filho”.
Para enfrentar a fila quilométrica, vá para 21.
Para furar fila e entrar lá na frente, vá para 24.

6
“Parabéns! Você acaba de ganhar... um milhão de reais!”, disse Tião ao telefone, esbanjando empolgação. Já que toda a lógica parecia ter mesmo ido pro brejo, que mal havia em se divertir um pouco? “Para receber o grande prêmio, você só precisa responder a uma última pergunta! Quando é que urucum dá?” Para sua surpresa, a voz malandra da gravação irrompeu ao vivo, gritando: “De setembro a dezembro, cerca de 130 dias depois da abertura da flor!” Tião ficou sem reação com a resposta certeira do sujeito e só conseguiu dizer: “É o Djavan?” “Djavan é o nome do barco, chefia. Meu nome é Vercilo. Quando é que eu recebo meu prêmio? Tô com três mensalidades atrasadas no puteiro.” “Vem aqui pro Poço das Almas Suicidas”, respondeu Tião, “e eu te entrego depois que você me tirar daqui”.
Vá para 14.

7
Jeová estava um caco, esparramado pelo chão como uma batatinha quando nasce. Havia sido atingido no pâncreas por uma volumosa edição de Guerra & Paz para míopes e falava com dificuldade. Tião se ajoelhou perto dele e ouviu: “Tiããããão... ponha a mão no meu bolso, Tiããããão...” Ele obedeceu e encontrou ali uma coisa rígida e maciça. Era um smartphone. “Ligue para o número do barco e salve-se, amigo Tião”, disse Jeová antes de virar pro lado e deixar escapar seu último suspiro. Sua alma escorregou para fora do corpo e deslizou até cair no Rio das Almas, onde ficaria boiando durante toda a eternidade, como sempre acontece com quem tem a infelicidade de morrer depois de morto. Tião tentou encontrar a saída de emergência que quase chegara a abrir, mas tanto ela quanto a moça com a camisa de “posso ajudar?” haviam desaparecido no meio da balbúrdia. Só lhe restava ligar para o número apagado na lateral do navio chamado Djavan. Mas quando tentou, deparou-se com uma mensagem de caixa postal.
Para deixar recado pedindo socorro, vá para 4.
Para desligar e jogar joguinho no celular, vá para 10.

8
“Edvanir!”, Tião chamou a fogosa réptil. Ela não ouviu: continuava pulando com os bracinhos levantados, as asonas de fora, o suor percorrendo as escamas. Tião chegou mais perto e notou que ela berrava a plenos pulmões: “Encontrei Jesus! Encontrei Jesus!” Teve que cutucá-la com o cotoco (“cotocá-la”?) três vezes até ela se virar. “Tião!”, exclamou a dragona, sem parar de pular. “Que surpresa te encontrar aqui! Vem louvar o Senhor comigo! Na casa do Senhor não existe Satanás!” Não adiantou tentar convencê-la a ir embora com ele: contra todas as probabilidades, a criatura do mal recém-convertida ao cristianismo tinha se encontrado no Vale da Micareta Eterna. “Xô, Satanás! Xô, Satanás!”, ela voltou a cantar, sacudindo a cauda pontuda na cara de Tião. Dez minutos depois, ele estava de volta ao barco Djavan. “Simbora daqui, Vercilo.”
Vá para 22.

9
Vercilo chegou gingando e cumprimentou Tião com um high-five: “E aí, brou! Cadê minha grana?” Tião desconversou, disse que o dinheiro estava enterrado atrás da montanha azul, e que pra chegar até lá precisava de uma carona zero-oitocentos. Vercilo, que era um cara de boaça, topou o arranjo. Subiram no convés do barco Djavan, adentraram a salinha do capitão e Vercilo disse: “Quer sentar onde, chefia? Direita ou esquerda?” A pergunta parecia simples, mas Tião se viu indeciso.
Se acha que Tião deve sentar-se à direita, vá para 20.
Se prefere a esquerda, vá para 17.

10
“Quer saber?”, pensou Tião. “Que se foda. Eu vou é jogar Angry Birds.” Equilibrou o aparelho sobre o cotoco e danou a estilingar passarinho como se não houvesse amanhã. Mas não importava o quão certeira fosse sua pontaria: ele foi perdendo uma partida atrás da outra e se aproximava de um game over. “Deseja ganhar mais uma vida?”, perguntou o jogo ao final de outra derrota. Tião clicou em “Sim” e começou a experimentar uma sensação esquisita. O cotoco formigava, as pernas tremiam, a cabeça chacoalhava. Olhou para seu corpo e percebeu que estava desaparecendo aos pouquinhos. Foi aí que entendeu porque Jeová lhe dera aquele aparelho e porque sentira a súbita vontade de jogar um game: ele tinha ganhado uma nova vida e estava voltando ao mundo terreno!
Vá para 25.

11
“Telepizza Zangabeiras, pertinho de ti”, atendeu o atencioso atendente. Tião pediu uma pizza de arroz com ovo, uma de sushi com caramelo, um calzone de frango com sabão e uma Fanta Chorume. “É pra já, senhor. Para onde devo mandar?” “Pro inferno”, respondeu Tião, mas aí o atendente achou que era trote e desligou. O rango que esperasse: uma voz malemolente veio logo em seguida: “Você que é o Tião?” Era um sujeito de cabelo raspadinho, estilo Ronaldinho. “Mr. Djavan, I presume”, disse Tião. “Não, chefia. Djavan é o nome do barco. Meu nome é Zoli, mas todos me chamam de Vercilo. Simbora dessa joça?”
Vá para 20.

12
Tião desceu do barco, passou por debaixo de uma cordinha e adentrou o temível Vale da Micareta Eterna. O cenário era desolador. Milhares de almas sofridas eram obrigadas a pular que nem pipoca, levantando poeira e tomando o cuidado de segurar o tchan. De cima de um trio elétrico, criaturas amedrontavam a multidão: uma se dizia crocodilo e prometia devorar a todos; outra ameaçava invadir seu mundo, beber de sua água e outras barbáries. Tião passou por um farol apagado e um moinho abandonado até finalmente avistar, no meio da muvuca, sua escamosa amiga. Ela estava com os bracinhos levantados em direção ao trio elétrico – provavelmente insultando os seres que atormentavam a massa, pensou Tião. Estava indo falar com ela quando foi abordado por um sujeito de capuz. “Tá afim de um barato?”, perguntou ele.
Para ouvir o cara, vá para 18.
Para ignorá-lo e ir chamar a dragona, vá para 8.

13
“Sai daqui, velha escrota”, disse Tião, mandando às favas toda a educação exemplar que havia recebido no colégio interno de Kiev. A pobre senhorinha com problemas dermatológicos saiu choramingando e a moça do guichê reapareceu pouco depois, para alívio de Tião. “Próximo!” Ele avançou com gana: “Eu gostaria de reencarn--” “Preencha este formulário”, interrompeu ela, entregando-lhe um calhamaço com noventa e sete páginas. “Carimbe em três vias, anexe uma cópia de sua certidão de óbito e volte daqui a trinta dias. Próximo!” Tião quase babou de desespero. “Não tem nada aí que seja mais rápido?”, disse, recebendo um olhar quase sádico como resposta.
Vá para 23.

14
Enquanto aguardava a chegada de Vercilo, Tião reparou no mar de destruição causado pela tempestade randômica. Jeová tinha perdido a perna após ser atingido por um boneco do Fofão com faca dentro, a vaca vestida de cisne negro morrera depois de ser alvejada por um ornitorrinco de burca, e a moça com a camisa de “posso ajudar?” virara mingau ao ser acertada por uma gorda com uma blusa escrito “precisa me amar”. Ficar ali, esperando de bobeira, parecia cada vez mais arriscado. Tião notou que uma porta de sucupira, adornada por adornos adornantes, também havia despencado do teto e estava de pé, escorada numa parede. Achou aquilo muito estranho, mas igualmente tentador.
Para abrir a porta, vá para 5.
Para continuar esperando Vercilo, vá para 9.

15
Tião discou 666 e ouviu uma voz robótica, gravada especialmente pelo Stephen Hawking a pedido da Capeta: “Tecle 1 se deseja continuar na linha. Tecle 2 se deseja ouvir a primeira mensagem novamente. Tecle 3 seguido de asterisco se deseja ouvir Lelek Lek em looping durante duas horas. Tecle 4, faça um oito com a mão e um zero com o pé se não deseja ouvir Lelek Lek em looping durante duas horas. Tecle 5, ponha a mão no joelho e dê uma abaixadinha se deseja...” Tião estava prestes a perder as esperanças quando a voz robótica informou: “Para falar com Vossa Capetência, basta dizer seu nome e a cidade de onde está falando”. “Tião Moskovsky, Poço das Almas Suicidas”, obedeceu Tião, sem a pretensão de enganar ninguém. “Bonjour, Tião”, respondeu a voz inconfundível da Chavelhuda. “Não agüentou um dia e já tá pedindo arrego?” “Eu preciso sair daqui, dona Diaba. Tenho assuntos a resolver lá em cima. Eu faço o que a senhora quiser, mas me tira desse lugar.” Podia-se ouvir o sorriso da Coisa-Ruim do outro lado da linha: “Pois que coincidência. Tenho uma proposta pra você bem aqui nas minhas mãos.” Tião tremeu nas bases. Fazer negócios com o capeta pelo telefone era mais arriscado do que pegar mulher na Tailândia sem ver radiografia do útero, mas que escolha ele tinha? “Estou disposto a ouvir”, balbuciou, antes de ser engolfado por uma nuvem úmida de gelo seco. Quando a névoa se dissipou, Tião estava de frente a uma sorridente Diabona.
Vá para 19.

16
“Vai pra peida, Satanásia”, disse Tião, devolvendo a folha em branco. A Diaba fechou a cara como se tivesse acabado de ser chamada de gorda. “Como queira, senhor Moskovsky”, disse seriamente, e desapareceu numa nuvenzinha de enxofre com Chanel número 5. Tião sentiu um calor súbito e viu que chamas flamejantes pegavam fogo em alta temperatura por todos os lados, cada vez mais perto, cada vez mais quentes. Primeiro elas atingiram seus pés, chamuscando a unha encravada no dedão esquerdo e os pêlos do peito do pé direito; subiram pela batata da perna até chegarem ao traseiro, ardendo muito mais que hemorróida e atingindo rapidamente a cacunda, o cotoco, a clavícola e o crânio. E assim Tião permaneceu por cinco mil anos, renovados posteriormente por outros dez mil e finalmente pelo resto da eternidade e do além-infinito, queimando no inferno por todo o sempre. FIM
Tente novamente.

17
“Toca pra fora dessa pocilga, Vercilo!”, disse Tião, recostando-se no assento esquerdo do S.S. Djavan, pronto pra tirar aquela soneca. “Tá pensando o quê, vagaba? Tu tem que remar também!”, retrucou Vercilo, entregando-lhe um garboso remo de madeira podre. “Rema rema rema remadoooor”, cantava o capitão, enquanto Tião se esforçava para tocar o barco adiante. O problema, claro, era a falta que fazia sua mão esquerda: só com a direita e o cotoco ele mal conseguia segurar o remo, que dirá dar impulso suficiente. Por sua vez, Vercilo, no assento da direita, remava com energia total. Não demorou muito para o barco começar a tombar para a esquerda e capotar no Rio das Almas. Vercilo afundou junto, como manda o manual do capitão suicida mirim, mas Tião conseguiu nadar torto até a beira do rio e se arrastar para a terra firme. A porta de sucupira parecia agora a única alternativa para fugir dali.
Vá para 5.

18
O sujeito sacou do casaco um punhado de vidrinhos e os exibiu com orgulho: “Tenho loló, lança e disco do Grupo Carrapicho. Tudo a preço de banana”. Tião recusou. “Valeu, mas a última vez que usei tóchicos a tia me expulsou do Maternal III. Peguei trauma.” O sujeito não se fez de rogado. Pegou um comprimido que Tião nunca tinha visto e ofereceu: “Esse aqui custa um pouco mais, mas o barato dura uma vida inteira.” “E o que é?”, perguntou Tião. “É a pílula da reencarnação.”
Se acha que Tião deve aceitar a pílula, vá para 25.
Se acha que ele deve recusar e ir falar com a dragona, vá para 8.

19
“Esta é a minha proposta, mon amour”, disse a Capetuda, entregando um papel a Tião. Ele examinou o material: era uma folha de papel sulfite, gramatura 75g, sem laminação fosca ou faca especial, branco na frente e no verso e com apenas uma linha preta traçada quase no rodapé. “Que porrééssa?”, indagou, citando Shakespeare. “Um contrato, mon bijou. Basta você assinar e estará livre dos meus domínios. Voltará para a Terra. Reviverá. Ganhará corpo novamente.” Tião inclinou o rosto ligeiramente para a direita mantendo o olhar fixo na Diaba, como quem diz: aí tem coisa. Ele só tinha desagradado a Chefona desde que chegara no inferno. Dera-lhe um migué ao receber a missão de enfrentar Elvis Presley, enviara um espião para uma reunião ultraconfidencial, não passara dois dias degredado no Poço das Almas Suicidas e cá estava pedindo penico e oferecendo qualquer coisa para dar no pé. Era isso que o encucava: “O que a senhora vai querer em troca?” Ela manteve o suspense: “Nada, mon petit gateau. Apenas o bom e velho prazer de ver uma alma sofrida assinar um contrato em branco e deixar para minha purpurinada pessoa decidir o que escrever acima.” Tião encarou o papel, sem saber o que fazer.
Se você acha que Tião deve assinar o contrato, vá para 25.
Se acha que ele deve recusar, vá para 16.

20
Tião se recostou em seu assento enquanto o Djavan singrava o Rio das Almas. O rio era extenso e cruzava vários pontos turísticos do inferno. Do lado de fora da Coletânea de Imitações do Fernando Angelo, ouviram uma voz estridente balindo a trocentos decibéis: “Você pra mim foooooi o sol!...” Pela janela do Museu Histórico dos Penteados do Neymar, espiaram centenas de escalpos ostentando atrocidades capilares. De repente Tião ouviu um barulho de multidão, acompanhado por tremores graves como se milhares de pessoas marchassem fervorosamente, e gritos compostos apenas de vogais. Seria um treinamento do exército do inferno? Talvez da força aérea, o que explicaria os comandos de “tira o pé do chão”? “Ih, rapaiz. Esse aqui é o Vale da Micareta Eterna”, explicou Vercilo, tapando os ouvidos. Tião lembrou-se de sua amiga dragona, que tinha sido levada pra lá por culpa dele, após ajudá-lo na malfadada missão de seguir Lady Meneg'hell. Ouvia os gritos de “aê aê aê” e imaginava o sofrimento da pobre réptil. E de repente começou a cogitar uma missão de resgate...
Se acha que ele deve descer do barco e tentar salvar a dragona, vá para 12.
Se acha que deve esquecer e seguir em frente, vá para 22.

21
A fila caminhava a passos de formiga e sem vontade. Tião esperou com paciência de Jó durante quarenta dias e quarenta noites, sem comida, diversão ou arte, sem poder escapulir pra tomar um banho ou um drink no inferno. Quando finalmente chegou a sua vez, ele estava sujo, esgotado e com uma barba de fazer inveja a Confúcio, mas cheio de expectativa. “Bom dia!”, começou, com cara de cachorro que vai ganhar biscoito. “Eu gostaria de reencarnar como--”, mas a moça do guichê fez um sinal de peraí, colocou um aviso de volto já e escapou pela tangente. Tião não sabia se ria, se chorava ou se mostrava aquela sua imitação de Michael Douglas num dia de fúria. “Ih, quando é assim eles demoram uns dois anos”, veio uma voz vinda do canto. Era uma velha perebenta. “Se não quiser esperar”, disse ela, exalando um bafo podre, “eu posso adiantar as coisas pra você. Tenho aqui um cartão-reencarnação novinho em folha. É uma oportunidade ímpar.” Sua mão verruguenta segurava um envelope selado. “E o que você quer com isso?”, perguntou Tião. A velha fedida desconversou, dizendo apenas que ficava feliz em ajudar. Tião pegou o envelope, relutante, e pôs-se a matutar.
Para aceitar a oferta da velha e abrir o envelope, vá para 25.
Para recusar e esperar a moça do guichê, vá para 13.

22
Seguiram adiante a todo vapor, embora o motor do barco fosse a gasolina. Pouco depois encontraram um porto seguro e alegre, onde Vercilo ancorou o Djavan e mandou Tião descer. “E aí, chefia, o que vai ser? Quer bater um rango ou tomar uma breja?” Tião até considerou o convite, mas tinha coisas mais urgentes pra fazer. “Valeu, Vercilo, mas eu preciso ir embora logo desse inferno infernal. Tenho que arrumar um jeito de voltar lá pro mundo de cima.” Vercilo abriu um sorriso esquisito. “Tava só esperando você dizer isso, bofe. Tenho uma proposta über interessante pra você.” E começou a se transformar: o cabelo raspado deu lugar a longos chifres salpicados de brocal, os lábios ficaram carnudos e brilhosos, duas mamonas siliconadas saltaram do peito. Tião não acreditava em seus olhos: Vercilo era a Diaba!
Vá para 19.

23
“Tenho aqui uns formulários rápidos para umas vidas que ninguém quer”, disse a moça do guichê. Tião examinou os papéis. O primeiro prometia uma vida confortável no meio de uma família rica, mas por apenas alguns anos, já que ele nasceria com deficiência nas células de Kupffer e morreria antes de perder a virgindade; o segundo era pra ser gêmeo siamês do ACM. Tião devolveu os dois papéis e examinou o terceiro. Estava longe de ser o que ele tinha em mente, mas era a última opção que lhe restava. Ele preencheu seus dados, assinou o papel e fechou os olhos, resignado.
Vá para 25.

24
“Eu é que não enfrento essa fila enorme”, brasileirou Tião, posicionando-se estrategicamente atrás de um grandalhão e na frente de uma criancinha cega de óculos escuros, a poucos metros do início da fila. Mas o migué não saiu como previsto: a criancinha cega era um anão mafioso disfarçado, que ordenou que seus capangas enxotassem Tião a bordoadas e safanões. Humilhado, ele voltou para o final da fila com o rabo dolorido e entre as pernas.
Vá para 21 e vê se aprende a não furar fila.

25
Vários meses se passaram. Nove, pra ser mais exato. Tião não tinha muito o que fazer durante esse tempo todo: passava os dias enchendo a cara de fluido amniótico e pensando na vida que se aproximava. No início tinha espaço de sobra, mas a rotina sedentária fez com que ganhasse muito peso e ele já estava doido pra sair dali. Um dia, finalmente, começou a ouvir vozes do lado de fora; primeiro gritos sofridos de mulher, depois urros de encorajamento, todas em uma língua que lhe era completamente desconhecida. Uma fenda iluminada abriu-se diante de si e ele só conseguiu pensar antes de sair: “Jerônimoooooo!” Foi retirado por um homem de dois metros de altura, peito cabeludo, osso de albatroz atravessando o nariz e tatuagem de caveira cobrindo o rosto; ele arrancou o cordão umbilical com uma só mordida e o ergueu para as dezenas de pessoas ali presentes. Waka waka konga la konga!, disse ele, segurando Tião como aquele macaco fez com o Simba. Ratamahata kalunga sambuca!, responderam os outros, extasiados. Tião tinha nascido uma linda garotinha da tribo dos Tak Tak, na longínqua Ilha de Ragatanga.

Frase do próximo capítulo:
Chato é ter chato.”
Isabella Brandão

O capítulo também deverá conter um haikai, um espadachim e um mamilo no pé.

(Lembrando que todos os capítulos desta última temporada deverão conter a palavra "último". "Última", "últimos","últimas" também valem.  "Ultimamente", "ultimato" e "ultimogênito" estão proibidas.)